sexta-feira, 7 de setembro de 2012

BLOG Escreva Lola Escreva


“OLHA QUEM MANDA AQUI” NÃO MAIS TOLERADO...EM BRUXELAS

Era para ser um trabalho de conclusão de curso para a jovem estudante de cinema Sofie Peeters. Mas seu documentário de 17 minutos, Femme de la Rue (Mulher da Rua; veja o trailer eum trecho), tem gerado um enorme e importante debate na Bélgica. Com uma câmera escondida, Sofie filmou as grosserias que escuta ao sair na rua. 
Praticamente toda mulher já passou por isso. Já faleideste tipo de abuso algumas vezes, e insisto: é uma maneira de limitar o espaço da mulher, de cercear seu direito constitucional de ir e vir, de lembrá-la que seu lugar não é ali, em público, e que sua esfera deve ser apenas doméstica. Em outras palavras: é um jeito muito eficaz dos homens dizerem, diariamente, “Olhaquem manda aqui”. 
O documentário foi exibilido na TV belga, o que me leva a pensar: se alguém fizer um curta desses, ele iria ao ar na TV brasileira? Haveria uma discussão inteligente sobre este problema, ou apenas o velho lugar comum de que falar pruma mulher desconhecida “quero comer teu rabo” é um super elogio pra ela?
Sim, porque a ironia maior é tantos homens (e algumas mulheres que compram a ideia) acreditarem que esse tipo de abuso é bom pra autoestima das mulheres. Ô, é ótimo mesmo. Tanto que há um site (em inglês), o Hollaback,em que um monte de mulheres registram, todo dia, o abuso que sofrem ao cometer aquele crime terrível -– sair na rua, em qualquer horário, em qualquer lugar (já fizeram uma versão brasileira do Hollaback? Façam!). Independente da roupa, da idade (geralmente as grosserias começam quando uma menina tem dez anos, e não tem idade pra terminar), da aparência, as mulheres acabam ouvindo essas grosserias apenas por serem mulheres. Isso não é paquera, não é sedução. É intimidação. É terrorismo sexual. É uma lembrança que mulheres podem ser estupradas a qualquer hora e lugar.
O documentário de Sofie foi criticado porque a maior parte dos homens filmados é de origem árabe. Isso porque o vídeo se passa no bairro de Anneesens, onde Sofie mora, um bairro de maioria imigrante. Mas as mulheres que têm de lidar com esse abuso sabem que isso não está preso à raça ou classe social. Acontece em todo o mundo.
A boa notícia é que o debate gerado pelo documentário fez com que uma lei passasse em Bruxelas. Desde o dia 1 de setembro, insultos na rua, sejam eles sexistas, racistas, homofóbicos ou de outro tipo, estarão sujeitos a multas entre 70 e 250 euros. Obviamente, apenas esse dispositivo opressor não é suficiente. Como diz Claudine Lienard, coordenadora de projetos daUniversité des Femmes, “é necessário mostrar às pessoas o contexto dentro do qual seus comportamentos se exprimem, contexto este que é patriarcal e de dominação masculina”. 
José Tarcisio me fez o enorme favor de traduzir e me enviareste texto esclarecedor.
Abuso: a rua não pode mais ser um espaço onde os homens fazem suas leis
Por Magali de Haas, Anne-Cécile Mailfert e Hélène Assekour, membros do "Osez le féminisme"
Na Bélgica, o vídeo de Sofie Peeters, que pôs em evidência a realidade do abuso de rua em Bruxelas, teve o efeito de uma bomba no debate público e suscitou numerosos depoimentos na internet. O mais surpreendente para nós é a surpresa que ainda gera esse tipo de constatação.
Sim, a rua é um lugar onde as mulheres são expostas ao sexismo e à violência de certos homens. A maioria das mulheres, se não todas, já conheceram em suas vidas, de maneira mais ou menos frequente, o abuso na rua. Este pode ter diferentes formas, indo de comentários sobre o físico ou a roupa até insultos machistas, passando pelos assobios e convites insistentes. Algumas vezes ele vem acompanhado de agressões físicas (empurrões, mão na bunda, etc.)
Não deixemos acreditar que é uma questão de erradicar o flerte dos lugares públicos. É muito fácil ver a diferença entre sedução e o abuso de rua. A primeira sugere a reciprocidade e não é insistente se não for correspondida; o segundo cria uma situação intimidante, hostil e ofensiva. Além disso, o caráter repetitivo desse comportamento cria uma situação de tensão permanente para as mulheres submetidas a ele.
Essas situações de sexismo ordinário e de abusos na rua, e o fato de serem tolerados, são graves. Sem surpresa, elas se assemelham a todas as outras formas de violência contra as mulheres. Os mesmos fenômenos de interiorizarão acontecem com as mulheres vítimas de outras violências sexistas: a culpabilização, a vergonha, o medo. Seja por violências verbais ou físicas, a palavra das mulheres ainda é sistematicamente desacreditada, banalizada e finalmente reduzida ao silêncio. É o caso de mulheres vítimas de estupro, das quais somente 10% denunciam, mas também daquelas submetidas a agressões físicas e/ou sexuais, abuso sexual e abuso moral.
O fenômeno do abuso, que se insere no contexto da violência machista, mantém um sentimento de que a rua é um espaço masculino no qual as mulheres não podem circular de maneira livre e segura a qualquer hora do dia e da noite. A rua seria então um domínio reservado aos homens, onde ele impõem suas condições, suas regras e seu controle. Coitadas daquelas que as transgredirem! Se as mulheres saem, elas têm que se dobrar às regras ditadas pelos homens: sempre estar disposta a receber "elogios", insultos ou investidas… em suma, a estar disponível.
O abuso de rua, como todo tipo de violência contra a mulher, se baseia em uma ideia ainda subjacente na nossa sociedade patriarcal: o corpo das mulheres está à disposição dos homens e submetido ao desejo deles. Ora, as mulheres deveriam poder caminhar livremente no espaço público sem medo e sem serem a todo momento lembradas de seu gênero, sua orientação sexual, sem serem pressionadas a um papel de sedução dominado pelos homens, sem ter que justificar se estão disponíveis ou não.
Não tentemos também reduzir a polêmica, achando que o machismo só existe na rua em determinadas classes sociais ou em determinada cultura. Não podemos cair na armadilha de uma oposição entre luta anti-sexista e luta anti-racista. Estas duas lutas estão intrinsecamente ligadas e denunciam os mesmos mecanismos de discriminação e dominação. O sexismo não é um fenômeno cultural ou de uma geração, ele é universal, isto é, ele está presente em todas as culturas e a todas as classes sociais.
A presença de mulheres no espaço público em geral continua a incomodar. O exemplo dos deputados assoviandopara Cécile Dufflot na assembleia nacional porque ela estava usando um vestido está aí para nos lembrar que não existe nem cartografia nem "sociografia" da misógina. Reflexo arcaico de uma época em que mulheres estavam "presas" em suas casas e à esfera privada, as observações sexistas quotidianas, na rua, no trabalho ou na Assembleia Nacional, pela sua natureza e quantidade, longe de serem piadas engraçadinhas sem consequência, contribuem para manter e legitimar a exclusão de mulheres do espaço público.
O grande número de depoimentos postados na internet depois da divulgação do filme de Sofie Peeters nos permite perceber que existe, por detrás de todos estes exemplos individuais, um fator social. Fator que precisa de respostas políticas.
A punição pela lei é uma boa resposta política? A lei tem, por definição, um caráter normativo importante. Uma lei sobre o conjunto de violências contra as mulheres permitiria ao governo demonstrar a sua vontade de lutar contra essa violência. Mais é ilusório acreditar que a lei por si só é suficiente. O sistema judiciário ainda tem que evoluir muito no tratamento dado à violência contra as mulheres; evolução que não acontecerá se um plano de formação de policiais e de justiça não for colocado em prática.
Para se atacar a raiz da violência e do abuso de rua é necessário que estereótipos sejam combatidos, que exista uma educação para a igualdade e para a liberdade desde criança. A conscientização e a indignação que emergem hoje são os primeiros passos para que cada um se dê conta que esses comportamentos são inaceitáveis e precisam parar. Passemos rapidamente da indignação à ação.

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