“Em tempos de greve, o texto abaixo nos enche de esperanças de,
um dia, termos universidades de verdade em nosso pais”. (Lino Castellani sobre
o depoimento abaixo)
O depoimento de Marilena
Chauí no ato pela criação da Comissão da Verdade na USP
Confira abaixo a íntegra do depoimento da filósofa, que defende
um resgate histórico para que se possa democratizar a universidade de fato.
Confira abaixo o depoimento da filósofa Marilena Chauí no ato pela criação
da Comissão da Verdade na USP, realizado ontem, no auditório da Faculdade de
Economia e Administração (FEA).
Boa noite a todos e a todas, obrigada pelo convite. Quero começar fazendo duas
colocações. A primeira, certamente você sabe, mas sou avó, como alguns colegas
de colegial e faculdade. Nós [ela e Heleny Guariba] estudávamos juntas, ela que
escolheu o meu namorado, com quem
eu casei. Estive com ela na véspera do dia da prisão, foi a minha casa e
tivemos uma longa conversa, fizemos planos, íamos nos ver no dia seguinte, mas
eu não a vi mais. Entendo o que a Vera [Paiva] diz, levei muitos anos para
enterrar, não podia admitir.
A segunda é de um outro colega meu, o [Luiz Roberto] Salinas, que não morreu na
prisão, mas morreu por causa da prisão. Foi preso, torturado, e, na época, ele
não fazia parte de nenhum movimento ou grupo, nada. Mas tinha feito muito
antes, na altura de 64, e isso aconteceu no final dos anos 70. A esposa dele era
jornalista e havia publicado uma matéria, os policiais, militares, não
entenderam algumas palavras e interpretaram como um código. Foram ao
apartamento deles e, como ela não estava, pegaram Salinas, que foi torturado no
pau de arara dias a fio para dizer qual era o deciframento do código, das
palavras do artigo da mulher dele. Não era código, não havia o que dizer e ele
foi estraçalhado. O resultado dessa prisão: foi anulado, evidentemente, o
estado físico do Salinas e o seu estado psíquico. Foram anos para ele se
refazer, e nunca conseguiu realmente se refazer. Teve trombose nas duas pernas,
tendo que cortar dedos dos pés e morreu com uma síncope. Ou seja, foi morto
pela tortura. Amigo meu do coração, entramos juntos no Departamento de
Filosofia e, juntos, nos tornamos professores no departamento.
Gostaria de contar para vocês como foi entrar no campus da USP em 1969, logo
depois de dezembro de 1968, quando foi promulgado o AI 5. Você vinha para cá e
não tinha nenhuma garantia de que não seria preso e torturado, portanto, não
sabia se seus alunos estariam na classe e, quando você se dava conta de que
alguns não estavam, não ousava perguntar se tinham faltado na aula, se tinham
partido para o exílio, se já estavam presos ou se já estavam mortos. E a mesma
coisa com relação aos colegas. Tínhamos o pessoal do Dops à paisana nas salas
de aula e escutas na sala dos professores e no cafezinho. Éramos vigiados noite
e dia.
Eu me lembro que em 1975 a
Unicamp fez um congresso internacional de historiadores, e convidou Hobsbawn,
Thompson, enfim, a esquerda internacional. Houve as exposições dos brasileiros
e os estrangeiros disseram: Nós não estamos conseguindo entender nada do que
vocês dizem, não entendemos as exposições e sobretudo não estamos entendendo os
debates entre vocês. Então, nos demos conta que falávamos em uma língua cifrada
para não sermos presos. A esquerda acadêmica criou um dialeto, uma linguagem
própria na qual dizia tudo que queria dizer e não dizia nada que fosse
compreensível fora do seu próprio circulo. Foi uma forma de auto defesa e uma
forma de continuar produzindo, pensando e discutindo. Ao mesmo tempo, essa
forma nos fechou num circulo no qual só nós nos identificávamos com nós mesmos.
Isso é uma coisa importante, que a Comissão da Verdade traga o fato de você
criar um dialeto, criar um conjunto de normas, de regras, de comportamento em
relação aos outros, tendo em vista não ser preso, torturado e morto, durante
anos a fio.
Costumo dizer aos mais novos que eles não avaliam o que é o medo, pânico. Sair
e não saber se volta, sair e não saber se vai encontrar seus filhos em casa,
sair e não saber se vai encontrar seu companheiro, ir para a escola e não saber
se encontrará seus alunos e colegas. Você não sabe nada. Paira sobre você uma
ameaça assustadora, de que tem o controle da sua vida e da sua morte. Isso foi
a USP durante quase dez anos, todos os dias. Além das pessoas que iam
desaparecendo, desaparecendo... Ao lado das cassações.
Eu teria gostado que a [Eunice] Durham pudesse ter vindo, porque quando
ela fez parte da Adusp na gestão do Modesto Carvalhosa, fez o chamado “Livro
negro da USP”, que tem o relato de como foram feitas as cassações. As cassações
não vieram do alto. As congregações de cada instituto, de cada faculdade, se
encarregavam de denunciar, de delatar e de fazer a cassação. Isso é uma coisa
que a Comissão da Verdade precisa deixar muito claro, não foram forças lá de
fora que fizeram isso, nem militares. Foram os civis acadêmicos, dentro da
universidade, que fizeram uma limpeza de sangue. É uma coisa sinistra, mas
foram nossos colegas que fizeram isto.
E, impávidos, quando começou a luta pela volta da democracia, quando começaram
as greves no ABC, quando começaram as lutas pela diretas etc e tal, eu ia às
assembleias da Adusp e do DCE e ficava lado a lado com muitos deles que estavam
ali para fazer a defesa do retorno da
democracia, quando eles tinham sido apoiadores da ditadura. E isto não pode
ficar em branco.
Uma Comissão da verdade tem que dizer isto.
E eu gostaria também, como uma contribuição ao trabalho da Comissão da Verdade,
de retornar ao que o Eduardo e a Vera disseram, o fato de que a estrutura da
nossa universidade, mais do que a estrutura de outras universidades que
conseguiram se desfazer disso, é a mesma que a ditadura – através do MEC e do
acordo MEC-USAID – introduziu no Brasil e aqui se cristalizou. Primeiro, foi
feita uma chamada reforma universitária, e essa reforma universitária
introduziu a ideia de créditos, a ideia de disciplinas obrigatórias e
disciplinas optativas. Como a sustentação ideológica da ditadura era a classe
média urbana, era preciso compensar a classe média pela falta de poder
econômico e político e a compensação foi através do prestigio do diploma,
abriu-se a industria do vestibular, que veio por decreto.
Ou seja, a universidade que vocês frequentam, a universidade que vocês cursam,
a universidade que nós damos aula, é a universidade que foi estruturada a
partir do Ato Institucional número 5. Em outras universidades, houve força
suficiente, do corpo docente, do corpo dicente, para derrubar muita coisa. A
estrutura curricular não, continuamos Brasil afora com disciplinas
obrigatórias, optativas, créditos, frequência... A introdução dos créditos
significou a escolarização da vida universitária. Em uma universidade você pode
fazer duas ou três matérias no máximo e você deve ter duas a três horas de aula
por semana para cada uma delas, no máximo. O ideal são duas matérias, cada uma
delas com duas horas semanais para que você trabalhe o que ouviu em classe, vá
para as bibliotecas e laboratórios, faça pesquisas e tenha efetivamente uma
vida universitária. A reforma feita pela ditadura, ao escolarizar a
universidade, transformou-a em um curso secundário avançado, em um colegial
avançado. Isso a Comissão da Verdade tem que mostrar, mostrar as datas em que
os decretos vieram, as datas de implantação, quem implantou tudo isso, não pode
passar em branco também.
Uma outra coisa que é muito importante é o fato de que as contratações dos
jovens professores naquele período não eram feitas nem pelos departamentos, nem
pelos institutos, mas diretamente pela reitoria. Estou dizendo isso porque
quero fazer um complemento depois a respeito da reitoria atual. Como é que a
reitoria procedia? Ela recebia o processo de contratação e mandava para o Dops,
para a policia enviar a ficha policial do professor e saber se ele tinha participado
de algum movimento. A reitoria queria a ficha policial, que era a ficha
política do jovem professor. Em função disso, a reitoria dizia se contratava ou
não contratava.
Eu posso fazer um depoimento junto à Comissão da Verdade, se ela quiser, da experiência
direta que tive sobre isso. Eu era chefe do Departamento de Filosofia, havia o
processo de contratação de um jovem professor e a contratação não saía, os
papeis estavam na reitoria e pedi para ser informada do porquê de a contratação
não acontecer. Fui empurrada de uma sala para outra sala, para outra sala, e
ninguém respondia. Finalmente, fui levada a uma sala ao lado da sala do reitor.
Esta sala não tinha janelas, tinha uma porta e duas cadeiras com uma
mesinha. Ali, um senhor, um civil, grisalho, muito bem afeiçoado, me
mandou sentar e disse para mim: “Vou explicar para a senhora que esta sala não
existe, eu não existo e a conversa que nós vamos ter nunca aconteceu. O
professor não pode ser contratado porque ele esteve em um encontro estudantil terrorista,
então ele não vai ser contratado, aqui está o processo.” E foi quando eu vi,
estava tudo anotado a lápis, com as informações sobre ele vindas do Dops. Ainda
me disse: “Eu sei que ele era um lambari, sei que não é um perigo para a
segurança nacional, mas ele tem essa ficha e não vai ser contratado.” E ele foi
contratado, evidentemente vocês podem imaginar o barulho que nós fizemos, todo
o escândalo que fizemos e o risco que se corria se ele não fosse contratado.
Mas, era uma intimidação direta, não tinha algum esconderijo, era direto, na
cara. Eu posso, eu tenho o poder, eu faço e você engole.
A manutenção da estrutura da Universidade de São Paulo tal como ela foi feita a
partir do Ato Institucional número 5 pela ditadura é algo que tem que ser devassado
se nós quisermos democratizar a universidade. Para democratizar nossa
universidade, temos que desmontar aquilo que foi feito no final dos anos
sessenta e no decorrer dos anos setenta, é uma tarefa imensa que tem que ser
feita. E por que ela tem que ser feita? Porque, no momento que há uma hegemonia
no estado de São Paulo de um pensamento privatista e de um pensamento
neoliberal, a Universidade de São Paulo está sendo regida por estes princípios,
por este reitor. Não é só isso, esse reitor foi formado, teve o aprendizado
dele, como dirigente, nesse caldo de
cultura da ditadura. Portanto, é essa forma de gestão que explica essa coisa
inacreditável, e isso nem a ditadura fez, de por a polícia dentro do campus
para espancar os alunos.
E, para encerrar, me disponho a dar meus depoimentos para a Comissão da
Verdade. Penso, como os que me precederam, que tem que ser apanhado um período
longo, e penso que, como se trata da Comissão da Verdade da Universidade, no
caso da Universidade de São Paulo, é preciso contar não só as histórias ligadas
à violência de Estado, ao terrorismo de
Estado sobre os professores e os alunos, mas a maneira pela qual a universidade
foi estruturada para ser um órgão da violência, um órgão do autoritarismo. Ela
foi estruturada com a cabeça da ditadura e é por isso que ela é autoritária. E
é isso que a Comissão da Verdade pode mostrar ao desvendar a maneira pela qual
essa estrutura foi montada. E Salinas presente, Heleny presente.