Carta de repúdio ao programa Brasil em Movimento do Governo Federal
A atividade física (AF) permeia o
discurso do atual Governo Federal desde a sua proposta de plano de governo.
Naquele momento, já apresentavam uma compreensão simplista que entendia que a
AF, independente de contextos e iniquidades, produziria benefícios à saúde.
Agem, desde então, ao arrepio da farta documentação científica nacional e
internacional.
Nos últimos meses, representantes do
Ministério da Saúde (MS) vêm anunciando a proposta de um aplicativo para smartphones que pretende mediar o
trabalho de profissionais/professores de educação física (PEFs) e o interesse
da população, por meio de algoritmos que definirão valor, avaliação e
disponibilidade. Esse processo de trabalho carrega potenciais efeitos negativos
para a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), para a prestação de
serviços, para a saúde da população e do trabalhador submetido à lógica do
denominado “empreendedorismo”.
A proposta do MS se constitui em uma
tendência comum aos reordenamentos do sistema capitalista, portanto, não é
exatamente nova. Chama atenção a falta de transparência e a negação de
princípios doutrinários da política do Estado brasileiro para a saúde. Situação
agravada pelo novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde, que
coloca em xeque o financiamento específico para o Núcleo Ampliado de Saúde da
Família e Atenção Básica – NASF/AB, umas das formas de qualificação e oferta de
AF no SUS.
Nesse sentido, é possível elencar
questões importantes relacionadas à operacionalização do programa Brasil em Movimento:
• Como ficará a
longitudinalidade/continuidade do cuidado em saúde?
• As equipes de saúde receberão
financiamento ao indicar a AF ofertada pelo App?
• Como serão avaliados os indicadores
em saúde relacionados à AF?
• Quem não tem smartphone ou não tem
internet para ativar o App não poderá acessar o programa?
• Como a proposta vai se articular
com os programas já existentes?
• O aplicativo vai garimpar os
sentidos das práticas corporais, oferecendo a população a possibilidade de
escolher o que ela quer fazer, o que tem significado e o que responde
necessidade de saúde?
Essas são questões legítimas que
colocam em dúvida o processo aligeirado e os interesses em jogo. Ainda mais em
um cenário complexo no qual se produz o SUS, que tem sua formação, forjada na
solidariedade e na luta popular. Nesse sentido, a proposta apresentada pelo
Ministério da Saúde não coaduna com a história e o marco desse sistema de
saúde.
A implantação de uma saúde pública e
universal trouxe inovações que mudaram o sistema de assistência no Brasil.
Nesse processo, o SUS foi determinante para que houvesse a ampliação do acesso
a uma parte da população que antes não conseguia pagar por cuidados essenciais.
Isso teve impacto positivo na melhoria dos indicadores de morbidade e de
mortalidade, e redução nas iniquidades de saúde.
Atualmente, o Ministério da Saúde tem
papel determinante na execução de programas estratégicos, em especial, em uma
realidade ainda marcada pelo subfinanciamento e pela fragmentação de ações.
Entretanto, a proposta de privilegiar o uso de tecnologias associado ao
discurso de empreendedorismo na atenção à saúde não criará trabalho digno com
direitos e não contribuirá para ampliar o acesso da população à prática de
atividade física de qualidade.
Pelo contrário, o modelo produz um
desligamento do profissional com o contratante e com a equipe de saúde.
Consolida, dessa forma, a valorização de um falso “empresário-de-si”
permanentemente disponível, que não define o valor do próprio trabalho, que não
controla os algoritmos que o comanda e que é avaliado por procedimento,
constituindo, assim, um campo de atuação instável e sem direitos trabalhistas.
Além disso, o modelo provocará o aumento do adoecimento dos trabalhadores da
Educação Física, devido à instabilidade, precarização e rebaixamento do seu
trabalho.
Em uma realidade marcada por ataques
sucessivos aos trabalhadores, os PEFs se tornam cada vez mais fazedores de
“bicos”, pelo desemprego estrutural, pela retirada de direitos historicamente
conquistados e pelo enfraquecimento das políticas sociais. A informalização
formalizada aprofunda o mal-estar e destrói a possibilidade de futuro digno dos
profissionais da área.
Longe de ser uma proposta que produz
o sentimento de colaboração, o programa Brasil
em Movimento aprofunda a subordinação apoiada em políticas de austeridade.
O discurso do empreendedorismo é falso, pois na essência se trata da superexploração
do trabalho, da não garantia de direitos trabalhistas mínimos como: férias, 13º
salário, adicional noturno, licença maternidade, descanso semanal, proteção à
saúde no trabalho, entre outros.
Essa instabilidade, precarização e
rebaixamento do trabalho em saúde tampouco beneficiará o SUS já que estes
trabalhadores, sem vínculos trabalhistas, poderão repentinamente deixar de
ofertar a atividade caso surja qualquer outra oportunidade ou motivo.
Vale destacar que o trabalho em saúde
está atravessado pela institucionalização do cuidado. Ou seja, ele deve ser
constituído por amplas ações, deve compor iniciativas interprofissionais e
intersetoriais e estar articulado a redes de atenção ao bem-estar da população.
Assim, o trabalho em saúde possui
especificidades que não podem ser negadas. O resultado dele é produto da
intensa relação de usuários de serviços e dos profissionais da saúde. Isto é,
ele está radicalmente marcado por relações interpessoais.
Nesse sentido, o Brasil em Movimento é uma proposta de “uberização” do trabalho dos
profissionais/professores de educação física, que reduz o usuário do SUS a um
perfil consumidor individual de atividade física e o trabalho do PEF a
procedimentos sem acompanhamento, sem vínculo terapêutico e deslocados de
qualquer projeto singular construído de forma multiprofissional e/ou
intersetorial.
Sabe-se que a política de indução de
AF no Brasil deveria contribuir para o cuidado de saúde com foco em condições
crônicas e articulado a outras estratégias de promoção da saúde. A promoção de
AF de qualidade é um projeto coletivo, atravessado por determinações sociais
que não podem ser reduzidas a um algoritmo sem memória e sem um horizonte de
transformação social.
A própria OMS possui diretrizes para
a utilização de dispositivos móveis que preveem ampliar o acesso da população a
informações, serviços, redes de cuidado e profissionais de forma segura e com
qualidade. Nesse sentido, há recomendações internacionais explícitas para a
promoção da atividade física com abordagem integrada e sistêmica, que precisam
ser consideradas pelo Ministério da Saúde, e que vão na contramão da proposta
de uberização - superexploração, rebaixamento e precarização do trabalho.
Por isso, o Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte (CBCE), entidade científica que congrega pesquisadores
ligados à área de Educação Física/Ciências do Esporte, repudia o programa Brasil em Movimento, reafirma a defesa
do SUS e do trabalho com dignidade e com direitos. Colocamo-nos à disposição
para dialogar e contribuir com políticas públicas solidárias que visem ampliar
o acesso da população ao direito constitucional à saúde.