segunda-feira, 3 de outubro de 2011

#FORARICARDOTEIXEIRA




O excepcional mundo da Fifa
 
Projeto de Lei da Copa vai para o Congresso cheio de regalias à Fifa, confirmando conceito de “cidades de exceção”, de Carlos Vainer. A Fifa ainda acha pouco.
 

Jornal Brasil de Fato
Vinicius Mansur de Brasília (DF)
 
O GOVERNO FEDERAL enviou o o PL 2330/11 à Câmara dos Deputados no último dia 19.
 
A provação do projeto é uma das exigências da Fifa ao Estado brasileiro para a realização da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014, no Brasil.
 
O texto está recheado de privilégios aos donos do futebol internacional, mas os principais atores desse processo se esforçam para dar outra interpretação.
 
De um lado, o governo brasileiro, através de declarações da Casa Civil à imprensa, afirmou não se subordinar às ameaças da Fifa e garantiu o direito de idosos pagarem meia entrada nos jogos, transferiu as decisões sobre a meia entrada para estudantes e sobre o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios para o âmbito estadual, não deu a urgência esperada pela entidade à tramitação do PL, entre outras.
 
Por outro lado, a Fifa, que em geral elogia rapidamente as medidas governamentais a seu favor, não se pronunciou sobre o PL.
E como o contrato entre as partes estabelece o dia 1º de junho de 2012 como prazo final para rescisão sem pagamento de multa, ou seja, cancelamento da Copa no Brasil, a Fifa segue suas chantagens de bastidores como um jovem mimado dono da bola: ou acata-se todos seus desejos, ou não há jogo.
 
Também não agrada a Fifa a obrigatoriedade de fazer um vídeo de ao menos 6 minutos, no máximo até duas horas depois da partida, e ceder pelo menos 10% de cada partida e 30 segundos das cerimônias de abertura e encerramento da Copa às emissoras brasileiras que não compraram os direitos de transmissão.
 
“As áreas escolhidas viram exclusividade da Fifa. Até o transporte coletivo se transformará em mostruário de publicidade cedida a essas instituições privadas internacionais”
 
O que diz a lei
 
O projeto de Lei Geral da Copa 2014 se dedica, sobretudo, à propriedade intelectual de símbolos e marcas da Fifa e da Copa. Apesar da legislação brasileira já abarcar o tema, a Fifa será privilegiada com uma lei específi ca para proteger os seus “produtos simbólicos”.
O parágrafo 2º do artigo 5º do projeto deixa clara a exceção aberta à entidade: “A concessão e manutenção das proteções especiais das marcas de alto renome e das marcas notoriamente conhecidas [da Fifa] deverão observar as leis e regulamentos aplicáveis no Brasil após o término do prazo estabelecido no [31 de dezembro de 2014]”.
 
“A cidade é expropriada do controle do seu próprio território. Tanto é que o prefeito do Rio entregou a chave ao Joseph Blatter, um cidadão denunciado na Europa por corrupção”
 
As marcas e símbolos Fifa e Copa do Mundo terão tratamento especial do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi), podendo ser registrados de graça e em até 60 dias. A falsificação e comercialização – sem aval da Fifa – destes símbolos serão considerados crimes com punição de até um ano de cadeia ou multa. O Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), órgão gestor de domínios na internet, deverá impedir o registro de qualquer domínio que lembre as marcas da Copa e da Fifa. Para evitar a promoção de eventos ou empresas em cima de suas marcas, a Fifa inseriu no PL a proibição ao que chama de “marketing de emboscada por associação” e “marketing de emboscada por intrusão”, o que lhe dá poderes de “quase censura”. (Veja o box “Conf itos com as marcas da Fifa”).
 
Controle do território
 
O PL proíbe diversas modalidades de publicidade nos chamados “Locais Oficiais de Competição” e nas suas imediações – as suas principais vias de acesso e lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles, diz o texto do projeto. Na prática, estes locais tornam-se quase uma jurisdição da Fifa. O comércio nessas imediações, inclusive os legalizados, não só os informais, correm risco de fechamento. Nos megaeventos esportivos, só os parceiros oficiais de seus realizadores tem atividade comercial liberada nessas áreas.
“Um bar que vende uma cerveja que não seja aquela patrocinadora da Fifa corre o risco de ser fechado. Nos Jogos Pan-Americanos [no Rio, em 2007], o contrato feito pelo comitê organizador com uma empresa de comida rápida levou as pessoas a serem revistadas para ver se não estavam levando um sanduíche ‘ilegal’. O Ministério Público entrou com uma ação e essa revista acabou sendo suspensa. Os táxis não podiam entrar dentro da Vila Olímpica para pegar passageiros. Com a Lei Geral da Copa, as áreas escolhidas pelo comitê organizador viram exclusividade publicitária da Fifa, até o transporte coletivo se transformará em mostruário de publicidade cedida gratuitamente a essas instituições privadas internacionais”, exemplifica o professor titular de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, Carlos Vainer.
 
Os ingressos para o mundial terão seus preços definidos pela Fifa e não precisarão constar nos bilhetes, como o Estatuto do Torcedor obriga
 
Vainer trabalha com o conceito de “cidades de exceção” para definir a transformação pela qual passam as cidades, especialmente aquelas sedes de megaeventos esportivos: “A cidade é expropriada do controle do seu próprio território. Não espanta que o prefeito do Rio tenha entregue a chave ao senhor Joseph Blatter [presidente da Fifa], um cidadão que vem sendo denunciado na Europa por corrupção. A cidade não o elegeu cidadão, não entregou poderes de governo a uma instituição privada sobre a cidade”.
O PL diz também que o acesso das pessoas e da imprensa aos eventos será controlado de forma absoluta pela Fifa e ela poderá colocar dentro do estádio – e até do país – quem bem entender. Os vistos e permissões serão emitidos em caráter prioritário, sem qualquer custo, para todos os indicados pela organização do evento, com algumas restrições previstas pelo Conselho Nacional de Imigração.
 
Mais um exemplo que confirma o conceito de cidades de exceção. “É da natureza de todo Estado soberano determinar como se faz o ingresso dos estrangeiros em seu território. Mas essa lei entrega a uma instituição privada o poder consular, isso é anti-constitucional, mas é uma lei enviada pelo governo nacional. Assim se constrói a legislação de exceção, que tem a forma da legalidade, mas na verdade fica à margem da lei – na medida em que a lei tem como princípios fundamentais a universalidade e a impessoalidade – gerando uma lei especial para alguns privilegiados e entregando a cidade ao desregramento total”, explica.
 
Apesar de não constarem no PL, caminha nesse mesmo sentido a série de incentivos econômicos dados pelo Estado a entidade máxima do futebol mundial (veja o box “Outros privilégios à Fifa”). Por exemplo, o Regime Diferenciado de Contratação (RDC), aprovado em agosto deste ano, é mais uma lei criada exclusivamente para as licitações e contratos relativos aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 e à Copa 2014, flexibilizando a contratação, permitindo sigilo dos custos das obras, dispensa publicação no Diário Oficial e permite que os municípios e os estados se endividem acima dos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
 
“Essa lei entrega a uma instituição privada o poder consular, isso é anticonstitucional, mas é uma lei enviada pelo governo nacional”
 
“O governo diz que o RDC permite controle, redução de custos, por que não usá-lo também para escolas e hospitais? Se é tão bom, por que não é geral? Por que municípios não podem se endividar acima dos limites para combater enchentes, para fazer esgotamento sanitário, etc., mas pode para fazer um estádio?”, indaga Vainer.
 
Enquanto isso, a consultoria legislativa do Senado informou, no último dia 20, que as obras do Mundial de 2014 ficaram R$ 6,829 bilhões mais caras de janeiro a setembro deste ano – aumento de 28,7% em oito meses.
 
Estatuto do Torcedor
 
Os ingressos para o mundial terão seus preços definidos exclusivamente pela Fifa e não precisarão constar nos bilhetes, como o Estatuto do Torcedor obriga no Brasil. Assim, os ingressos poderão oscilar de preço no transcorrer da competição. Há também um conflito quanto ao cancelamento, adiamento ou mudança de local do evento esportivo. Caso estas situações ocorram por conta de seu organizador, a lei brasileira diz que aqueles que já adquiriram o ingresso têm direito à devolução do valor pago e também indenização por eventuais custos que tenha tido.
 
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Outros privilégios à Fifa
• Isenção do adiantamento de custas, emolumentos, caução, honorários periciais e quaisquer outras despesas devidas aos órgãos da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, em qualquer instância, e aos tribunais superiores, assim como não serão condenados em custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé.
• A Lei nº 12.350, de dezembro de 2010, garante isenção fiscal à Fifa e ao Comitê Organizador Local (COL) da Copa. A expectativa é que haja uma renúncia de impostos de cerca de R$ 1,2 bilhão, sendo R$ 900 de tributos federais e R$ 300 milhões do Imposto Sobre Serviços (ISS), arrecadado pelos municípios.
• O Decreto nº 7.319, de setembro do mesmo ano, também regulamentou a isenção da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), do Programa de Interação Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) para as obras de reforma e construção de estádios usados no mundial.
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Tramitação
O governo enviou o PL 2330/11 com pedido de prioridade, e não de urgência, como queria a Fifa. Ele será analisado por comissão especial, onde deverão estar integrantes das comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática; de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio; de Defesa do Consumidor; de Turismo e Desporto; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. O líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), afirmou que a proposta só deve ser votada pela Casa no ano que vem.
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Conflitos com as “marcas” da Fifa
Os caprichos da Fifa irritaram muitos sul-africanos na Copa de 2010. A companhia aérea Kulula ironizou as restrições feitas em benefício da Fifa e fez um anúncio publicitário, em março de 2010, dizendo-se “A transportadora Nacional Não-Oficial da Você-Sabe-o-Que”. A peça trazia desenho de estádios, apitos, bolas de futebol, bandeiras da África do Sul e as cornetas “vuvuzelas”. Em um comunicado, a Fifa disse que não proibia o uso dos desenhos. Segundo a entidade, é a combinação desses elementos que foi proibida, classificados como “marketing de emboscada”. A Kulula retirou a peça de circulação. Dias depois, lançou novo anúncio com o slogan “Não no próximo ano, não no ano passado, mas em algum lugar no meio” e em letras menores “Há várias outras razões para viajar o nosso país este ano além daquela coisa que não nos atreveríamos a mencionar”. No novo desenho, os publicitários chamaram as vuvuzelas de “definitivamente, definitivamente um pino de golfe”, a bandeira da África do Sul tornou-se “toalha de praia colorida”, bolas de outros esportes substituíram as de futebol e o estádio foi substituído pela ponte suspensa do rio Storms. A irritação sul-africana com a entidade também fez surgir camisetas com a inscrição “Mafifa” e o movimento com nome cujo trocadilho é intraduzível: “Fick Fufa“

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